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Necropolítica nas Favelas: até quando vamos normalizar a morte dos mesmos corpos?

Publicado em: outubro 30, 2025 por Dra. Júlia Morelli d'Avila

Outubro termina, novembro começa e o silêncio é impossível, e ainda que fosse, chega a ser ensurdecedor.

Enquanto Outubro se despede com suas campanhas de autocuidado, damos início ao mês de novembro, carregado de memória, luta e identidade, éo mês da Consciência Negra.

Essa data não celebra apenas um marco histórico, mas denuncia um presente em que corpos negros seguem sendo alvo de políticas seletivas de morte.

Neste ano, o mês se inicia sob a sombra de mais uma chacina no Rio de Janeiro, resultado de uma megaoperação policial que escancara a necropolítica como prática institucionalizada.

O que assistimos nos últimos dias não é novo, mas deveria nos chocar como se fosse: mais uma operação policial, coordenada pelo governador Cláudio Castro, transformando o território de vida das favelas em palco de morte.

Mais uma vez, o noticiário brasileiro é manchado com o sangue de jovens negros assassinados em favelas, tendo seus lares destruídos, suas histórias interrompidas e um discurso oficial que continua legitimando a barbárie.

Enquanto o Estado chama de “ação de segurança pública”, eu chamo pelo nome que precisa ser dito: necropolítica.

O que é necropolítica nas favelas brasileiras?

Definição e origem do conceito

Necropolítica é um termo cunhado pelo filósofo Achille Mbembe, que define o uso do poder estatal para determinar quem pode viver e quem deve morrer, no Brasil, essa decisão de vida ou morte mira, quase sempre, o corpo preto, pobre e periférico.

Essa definição encaixa-se com perfeição na lógica que sustenta as políticas públicas quando olhamos para as favelas e periferias.

As chacinas que ocorrem nas periferias não são “excessos” ou “erros de execução”, elas são parte de um projeto de silenciamento e exclusão.

A Necropolítica se materializa quando:

  • O poder público escolhe investir em repressão, não em educação.
  • Operações com dezenas de mortos são defendidas como “necessárias”, enquanto a militarização das favelas se normaliza;
  • A resposta ao crime é o extermínio e não a inteligência, nem a inclusão.
  • As mortes de corpos negros são justificadas antes mesmo da apuração, “Morreu porque era bandido!”

Favela não é palco de guerra, é território de vida.

O que (realmente) há nas favelas?

Não são apenas pontos do tráfico ou centros de criminalidade, as favelas são lares, são histórias de resistência, são espaços onde milhares de pessoas constroem suas vidas, todos os dias, apesar do abandono do Estado.

Mais do que “bandidos”, o que existe nas favelas é uma população marginalizada, no sentido literal da palavra, vivendo à margem dos direitos mais básicos, aqueles direitos garantidos pela constituição em seu artigo 5º, direitos como saúde, educação, segurança e moradia.

Ao invés de proteção, enfrentam:

  • Educação precária
  • Falta de saneamento
  • Ausência de políticas públicas
  • Desemprego estrutural
  • Violência legitimada e recorrente

Racismo estrutural e institucional: o motor da necropolítica

O racismo no Brasil não é um acidente de percurso, ele é parte da estrutura do Estado brasileiro, ele não é a exceção, ele é a regra, está nas estruturas, moldando políticas públicas e opera nos bastidores do sistema legal e policial.

Manifesta-se quando o sistema legal trata a favela como campo de guerra, e os corpos negros como ameaça pública.

Mas além do racismo estrutural e institucional, há também o componente da indiferença e da hipocrisia, porque os verdadeiros líderes do crime não estão no alto do morro, estão em salas com ar condicionado, em gabinetes parlamentares, em mansões escondidas por muros altos, quem comanda o tráfico em escala nacional não mora em barracos, mas em condomínios fechados.

E ainda assim, quando há uma chacina em bairro nobre, a cobertura midiática é diferente, a resposta é outra, o luto é legitimado.

A megaoperação no Rio revela o funcionamento dessa engrenagem, enquanto os “chefes do crime” seguem nos bairros nobres ou foragidos com proteção, o Estado mira seus fuzis contra jovens negros, pobres e periféricos.

Justiça seletiva é privilégio, então deixa de ser justiça

A dignidade humana, aquela garantida pela Constituição, ainda não chegou para todos, principalmente para os que nascem com a pele preta e no endereço “errado”.

É impossível se dizer defensor da justiça e permanecer em silêncio diante do que vem acontecendo, ser advogada é, antes de tudo, honrar o princípio da dignidade da pessoa humana, é entender que os direitos fundamentais não são retóricos, são direitos inegociáveis, e irrenunciáveis.

Violência institucional não pode ser política de Estado, a morte de jovens negros e favelados não é um efeito colateral, é projeto, é política de extermínio.

Nesse mês de Novembro, mês da Consciência Negra, que se iniciará amanhã, a pergunta que fica é: quantos mais precisarão morrer até que a vida preta seja, de fato, reconhecida como vida?

O silêncio nos torna cumplices, e a neutralidade é a escolha pelo lado do opressor.

Hoje, o meu desejo é para que a nossa voz ecoe, a nossa posição seja firme, e que permaneçamos na luta por Justiça, e que o Direito, finalmente, esteja do lado da vida, inclusive (e principalmente) daquelas que o sistema insiste em tratar como descartáveis.

Referências

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
Agência Brasil – Número de mortos pode ultrapassar 100 em megaoperação no RJ – https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/seguranca/audio/2025-10/numero-de-corpos-resgatados-apos-megaoperacao-no-rj-pode-passar-de-100?utm_source=chatgpt.com
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm


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OAB/SP 465.703 Dra. Júlia Morelli d'Avila
Pós Graduada em Advocacia Consultiva, Direito de Família e Sucessões

Especialista e Pós-Graduada em Advocacia Consultiva, Direito de Família e Sucessões com forte atuação no contencioso.

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