Ao longo do tempo, o Direito de Família passa por constantes e significativas mudanças, pois a sociedade está em constante movimento, o que decorre das relações interpessoais e familiares.
O Direito de Família vem evoluindo muito nos últimos anos, especialmente após a Constituição Federal de 1988, que extirpou em definitivo a distinção existente entre filhos havidos ou não no casamento, ou por adoção, garantindo que todos terão os mesmos direitos de forma igualitária, caracterizado pelo Princípio da Isonomia Filial.
Essa inovação legislativa é decorrente da própria evolução da sociedade, que modificou seu pensamento e costumes, passando a formar novos tipos de famílias, atualmente amplamente reconhecidos legalmente, como famílias formadas por duas pessoas do mesmo sexo, famílias formadas por somente por pai/mãe com o filho/filha e tantos outros modelos.
Com isso, temos que a entidade familiar não é mais baseada unicamente na questão patrimonial, como já o foi preteritamente, passando a adotar também a dignidade da pessoa humana e afetividade das relações familiares como base de sua constituição.
Multiparentalidade?
Tendo em vista essa constante evolução da sociedade, nossos Tribunais passaram a reconhecer o instituto de multiparentalidade ou pluriparentalidade, que, de forma resumida, consiste na existência fática de uma criança ou adolescente possuir dois pais ou duas mães, um biológico e o outro socioafetivo.
Contudo, a legislação pátria é omissa em relação à multiparentalidade, sendo que devemos buscar as respostas em princípios constitucionais e infraconstitucionais.
A multiparentalidade é algo recente em nossa Doutrina e Jurisprudência, que ainda depende de muita maturação e estudo para aplicação em nossos Tribunais, que já o vem fazendo de forma personalíssima, ou seja, analisando detalhadamente caso a caso, que são poucos, para somente então a reconhecerem ou não.
O reconhecimento da multiparentalidade está umbilicalmente vinculado ao afeto, ou seja, ao verdadeiro sentimento existente de pais e filhos, especialmente em proteção ao melhor interesse da criança ou adolescente, que devem possuir a posse do estado de filho, devendo se sentir como verdadeiro filho, com todos os laços inerentes a uma relação familiar.
Portanto, é possível concluir que a multiparentalidade é uma questão personalíssima, onde somente as pessoas envolvidas naquela relação familiar de afeto que podem pleitear judicialmente o seu reconhecimento com a devida anotação na certidão de nascimento do filho.
Mas a omissão legislativa sobre o tema não pode impedir o reconhecimento judicial desta situação de fato, cabendo aos nossos Tribunais proverem a correta prestação jurisdicional aos seus interessados.
Desse modo, temos que nos socorrer dos princípios constitucionais e infraconstitucionais para a correta resolução da questão, como o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da busca pela felicidade, não distinção entre filhos biológicos, adotados e socioafetivos, parentalidade responsável, para citar alguns.
Imagine-se a seguinte situação:
– logo após o parto, a mãe tragicamente vem a falecer em decorrência de alguma complicação;
– o pai conhece outra mulher e casa-se com esta ainda quando o filho possui tenra idade;
– a atual esposa (madrasta) cuida do enteado como se mãe fosse, propiciando-lhe todos os cuidados necessários, nutrindo em ambos verdadeiro afeto, carinho e amor como mãe e filho;
– em decorrência deste laço mútuo, todos que não os conhecem pessoalmente, ou seja, a sociedade, os enxerga como mãe e filho, pois é exatamente desta forma que ambos se portam e se sentem;
– com o tempo, ambos desejam regularizar esta situação de fato, tornando-a de direito, preservando a identidade e o registro da genitora biológica no assento de nascimento do filho, cabendo ao Judiciário dar a resposta necessária.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo enfrentou esta exata situação em julgamento proferido no ano de 2012, no processo nº 0006422-26.2011.8.26.0286, onde restou reconhecida a multiparentalidade no caso em específico, reconhecendo a maternidade socioafetiva da “madrasta”, determinando a sua inclusão no assento de nascimento do “enteado” concomitantemente com a maternidade biológica, a saber:
“MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido. (TJSP – Apelação Cível 0006422-26.2011.8.26.0286; Relator: Alcides Leopoldo; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itu – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/08/2012; Data de Registro: 14/08/2012)”
Inclusive, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia se manifestado sobre o tema em 2011, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060 de Santa Catarina, que fixou a seguinte tese:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Configurada a multiparentalidade (paternidade ou maternidade socioafetiva), como se dará a sucessão em caso de falecimento do pai, mãe ou filho socioafetivo?
Como demonstrado acima, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou a tese, em repercussão geral, de que é possível o reconhecimento da multiparentalidade (biológica cumulada com a socioafetiva), aplicando-se todos “os efeitos jurídicos próprios”.
Contudo, a legislação pátria é omissa em relação ao reconhecimento da multiparentalidade e também o é em relação à sucessão nesses casos, cabendo aos nossos Tribunais “construírem” através da jurisprudência a aplicação das regras de sucessão em caso de multiparentalidade.
Diante da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011, é possível concluir que a multiparentalidade vem acompanhada de todas as regras de sucessão próprios da paternidade ou maternidade biológicos ou adotiva.
O artigo 1.845 do Código Civil determina que são os herdeiros necessários do falecido os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
Assim, reconhecida a multiparentalidade, o pai, a mãe ou o filho socioafetivo tornam-se herdeiros necessários uns dos outros, sem qualquer distinção, sendo possível requerer judicialmente sua cota parte da herança deixada pelo falecido.
Nesse caso, é possível pleitear judicialmente a aplicação das regras de sucessão dispostas no artigo 1.829 do Código Civil, que estipula a ordem de recebimentos da herança, também denominada de “vocação hereditária”.
Como em nosso sistema jurídico não existe mais qualquer distinção entre os filhos, sejam eles havidos na constância do casamento, fora do casamento, ou por adoção, também não há de ser feita qualquer distinção em relação ao filho socioafetivo, que mantem-se no mesmo patamar que os demais filhos que o falecido possa ter.
Assim, é possível para esse filho socioafetivo o seu reconhecimento judicial do estado de posse de filho e, com isso, todos os seus direitos ali decorrentes, como o direito à sua cota parte na partilha dos bens deixados por seu pai ou mãe socioafetivo, concorrendo com os demais filhos (irmãos) e com o cônjuge sobrevivente, se houverem, conforme dispõe o artigo 1.829, inciso I, do Código Civil.
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
E em caso de caso de falecimento do filho socioafetivo, que possui pai e mãe biológicos vivos com registro em seu assento de nascimento, acrescido de um pai ou mãe socioafetivo igualmente reconhecido em seu assento de nascimento ou judicialmente, como será feita a sucessão de seus bens?
O artigo 1.829, inciso II, do Código Civil, prevê para esses casos que a sucessão será feita aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente.
Contudo, assim como no caso de falecimento do pai ou mãe socioafetivo, a legislação também é omissa quanto às regras de sucessão em caso de falecimento do filho socioafetivo.
Nesse caso, sendo reconhecido o pai ou mãe socioafetivo com o devido registro no assento de nascimento, também seria possível pleitear judicialmente a partilha de eventuais bens deixados pelo filho socioafetivo, com a respectiva reserva da cota parte que lhe é cabível.
Assim, imaginemos a seguinte situação, o falecido não possuía filho e não era casado ou vivia em união estável, deixando somente os pais, inclusive o socioafetivo com o devido registro em sua certidão de nascimento. Caso o falecido tenha deixado bens, é possível realizar a partilha de tais bens em relação a todos os pais, cabendo para cada um, em tese, um terço do patrimônio.
Apesar disso, tendo em vista que, conforme já exposto acima, o reconhecimento da multiparentalidade é algo extremamente recente em nossos Tribunais, é necessário a análise de cada caso isoladamente, para somente então verificar a possibilidade de alguma medida judicial para resguardar os direitos sucessórios da parte interessada.
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Dr. Ivan Hachich
Advogado OAB/SP 310.450