Definir a si próprio(a) como um homem masculino ou uma mulher feminina nos dias de hoje virou tarefa árdua para algumas pessoas, sendo que quem não se identifica nesses rótulos é denominado de não binário.
Nesse diapasão, mister se faz buscar a adequada definição do termo em pauta, para que possamos navegar sobre o tema proposto com melhor lucidez jurídica.
Não-binariedade ou identidade não binária é um termo guarda-chuva (que abarca várias identidades diferentes dentro de si) para identidades de gênero que não são estritamente masculinas ou femininas, estando, portanto, fora do binário de gênero e da cisnormatividade.
O sexo biológico refere-se às características sexuais, primárias ou secundárias, e é classificado como endossexo (completamente masculino ou feminino), sendo tipicamente identificado à nascença por médicos com base nos genitais, independentemente da identidade de gênero que o ser humano possa vir a ter.
Já a identidade de gênero é uma questão de autopercepção e não se prende com fatores externos. Desta feita, uma pessoa pode ser cis ou transgênero. Sendo trans, pode identificar-se dentro do gênero binário (homenidade ou mulheridade) ou possuir uma identidade não-binária.
E a expressão de gênero, por sua vez, resulta de uma combinação entre comportamento social e maneirismos, com aparência (penteado, roupas etc.) interior ou exterior, e é geralmente encarada como feminina ou masculina. Considera-se que quem não exibe um alinhamento entre o que se considera feminino ou masculino é andrógino ou inconforme de gênero.
No que se refere às pessoas não binárias, objeto específico de nossa abordagem nesta matéria, estas, assim como qualquer outra pessoa, podem ter qualquer orientação sexual.
A determinação das orientações varia de pessoa pra pessoa. Muitos não querem usar microrrótulos, outros preferem algo mais amplo e padrão, como multissexual. Além das alossexualidades, pessoas não binárias podem vivenciar a assexualidade e até mesmo a arromanticidade.
Um indivíduo não binário, assim como um binário, pode ser monossexual (atraído por apenas um gênero), sendo sua classificação dividida entre ginessexual e androssexual, ao invés de homossexual ou heterossexual. Contudo, sabendo que não-binariedade não é um gênero monolítico, mas sim um termo guarda-chuva, há gays e lésbicas que se descrevem como não binários, pois a desconexão para com os gêneros binários não deve ser necessariamente integral.
A evolução do reconhecimento do gênero não binário pelo mundo já vem de tempos, tendo ocupado lugar comum nos Estados Unidos, Grécia, Holanda, Dinamarca, Austrália, Japão, Alemanha, Nepal, Áustria e Malta (pioneiro).
No Brasil, nos idos de 2020, algumas pessoas, isoladamente, conseguiram ter uma opção degenerizada de sexo na certidão de nascimento.
Em 2021, um grupo de brasileiros conquistou o reconhecimento registral de uma terceira opção de gênero em certidões de nascimento por decisão da justiça, sendo que, no mesmo ano um estudo publicado pela Nature revelou que 1,19% da população brasileira adulta é não binária.
Ainda em 2021, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) garantiu a uma pessoa que se identifica como do gênero não-binário o direito de mudar de nome para que ele seja neutro e também que no registro civil conste a informação “agênero/gênero não especificado”. O caso tramitou com o número 1001973-14.2021.8.26.0009.
No início de abril do corrente ano (2022), numa ação fantástica da Defensoria Pública Fluminense do Rio de Janeiro, algumas pessoas conseguiram retificar seu gênero para “não binárie”, usando neolinguagem.
Ainda no mesmo mês, a Corregedoria Geral da Justiça de Rio Grande do Sul, através do Provimento 16/2022, assegurou que pessoas não binárias alterassem seu prenome e gênero em seu registro de nascimento, de acordo com sua identidade autopercebida, independentemente de autorização judicial, permitindo incluir a expressão “não-binária” no campo de sexo, mediante solicitação do interessado em cartório.
No mês seguinte, maio de 2022, a Justiça da Bahia publicou um provimento que permitiu a inclusão de gênero “não binário” no registro civil dos brasileiros.
Atualmente, no passaporte brasileiro, há a identificação de sexo em três categorias: “M”, “F” e “X”, sendo que para que se consiga a emissão de tal documento com o sexo “X” é preciso selecionar a opção “não especificado” ao solicitar o novo passaporte no site da Divisão do Passaporte da Polícia Federal.
Com estas iniciativas, a lei reconhece a identidade de gênero, sendo possível retificar os registros, como a certidão de nascimento, alterando nome e sexo, sem que haja a exigência de laudos médicos ou procedimentos cirúrgicos, porém as categorias, a nível nacional, continuam sendo “masculino” e “feminino”, havendo propostas legislativas para o reconhecimento do gênero neutro.
O juiz Federal Herley da Luz Brasil, da 2ª vara Federal Cível e Criminal da SJ/AC, determinou que o IBGE inclua os campos “orientação sexual” e “identidade de gênero” nos questionários básico e amostral do Censo 2022, visando auxiliar nas políticas públicas voltadas a evitar a violência e discriminação da população LGBTQIA+. Tal decisão foi fruto de ação ajuizada pelo MPF, que postulava que o IBGE incluísse os campos de “orientação sexual” e “identidade de gênero” nos questionários básico do Censo de 2022.
Mas todas estas mudanças, apesar de prima facie benéficas, trazem consequências e responsabilidades severas em outras vertentes de ordem legal e social.
Definições quanto à aposentadoria e outros benefícios previdenciários e até mesmo questões relacionadas ao direito de família podem ser impactados.
Qual lei aplicar quando não se sabe qual gênero atribuir a uma pessoa, ou mesmo quando a própria pessoa não declara seu gênero?
Leis previdenciárias, por exemplo, têm regras diferentes para a aposentadoria de homens e mulheres (idade mínima).
Como será solucionada a questão afeta ao local de cumprimento de uma eventual pena de prisão (presídio masculino ou feminino)?
E como ficará o salário maternidade?
Pensões a filhos de militares são determinadas por gênero, sendo que filhas podem receber pensões vitalícias, enquanto que para os filhos o benefício cessa com a maioridade. E para os não binários, quando cessará o benefício?
As competições esportivas oficiais serão outro dilema! Em que time jogarão os não binários?
E por aí vai…
Fato é que até onde chegamos, a custo de muita luta, a conquista pelo reconhecimento do gênero não binário é sem sombra de dúvidas um avanço inquestionável sob a ótica documental reconhecida em juízo, mas não podemos nos dar por satisfeitos e aplaudirmos sentados, acomodados, uma legislação engessada, incompleta, que não passa de mero “cala-boca”, que ainda mantém os cidadãos desta classe ao léu, invisíveis, sem o devido respaldo jurídico que complemente suas vitais necessidades para o dia a dia, dando-lhes a verdadeira inclusão que merecem, através de regramentos legais específicos e de políticas públicas, que os coloquem em pé de igualdade em nossa sociedade, sobretudo se considerarmos que quanto menos desamparados e distantes dos ditos “normais”, ficarão relegados à sorte, permanecendo alcunhados por termos pejorativos e julgados pela ignorância alheia que os estigmatiza sem dó nem piedade, eivados de absoluto desconhecimento da causa.
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