Primeiramente, acho importante esclarecer e fazer uma breve retrospectiva de qual era o contexto histórico do Brasil à época, e acredito que ao final do meu texto se fará claro o motivo do porque o movimento negro não comemora esse dia, e ao meu ver, eu também não comemoraria.
No Brasil, a escravidão teve seu início por volta de 1535, quando ainda era colônia de Portugal com a vinda dos primeiros navios negreiros para cá, o intento era utilizar a mão de obra destes, bem como expandir e ocupar o território.
Por volta do século XIX, tendo como referência os ideais de liberdade da revolução francesa, além dos ideais ingleses, tendo em vista que se buscava progresso econômico e desenvolvimento do país, deu-se início ao movimento abolicionista.
Manter a escravidão apenas atrasava o crescimento do país, tendo em vista que o escravo era privado de sua liberdade, seja ela econômica ou de sua própria vida e escolhas, de modo que não tinha como ser consumidor, foi então que vislumbrava-se o desenvolvimento do país economicamente, através do movimento abolicionista.
Embora houvessem os abolicionistas, também existiam os apoiadores da escravidão, os escravocratas, como os fazendeiros produtores de café, que temiam a crise econômica devido à falta de mão de obra, bem como a igreja católica, vez que era possuidora de homens e mulheres no intuito de usufruir de seus serviços.
A abolição foi um processo, não aconteceu da noite para o dia. Leis foram sendo criadas e aprovadas aos poucos, com o intuito de demonstrar que estava sendo feito algo para dar continuidade nesse processo de abolição, mas na verdade eram leis que na prática a aplicabilidade era absurda ou eram leis que retardavam o desenvolvimento da população negra como seres de direitos.
Traçaremos então uma linha do tempo em relação a essas leis.
No ano de 1831 ocorreu a aprovação da Lei Feijó, que garantia a liberdade dos escravos desembarcados no Brasil.
Em 1850 com o advento da Lei Eusébio de Queirós, o tráfico negreiro foi proibido, entretanto, foi somente após a guerra do Paraguai, em 1864-1870, que devido muitos negros terem lutado, o movimento se tornou ainda mais intenso, recebendo o apoio da igreja, do exército, dentre outras instituições.
“Com a proibição do tráfico aumentaram os preços dos escravos e cada vez menos pessoas podiam comprá-los. Desde então, possuir escravos passou, aos poucos, a ser privilégio de alguns, especialmente dos mais ricos. Com os preços em alta, pobres e remediadas ficaram sem condições de ter escravos e os que tinham procuraram vendê-los. Para eles já não fazia sentido a escravidão. E passou a não fazer sentido defender a escravidão.” (ALBUQUERQUE, W. R. de; FILHO, W. F. Uma História do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, p.174 Disponível em: <https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/uma-historia-do-negro-no-brasil.pdf> Acesso em 06 de março de 2020.)
Em 1871 surge a Lei do Ventre Livre, que concedia a liberdade aos filhos das escravas nascidos após 1871.
No ano de 1885 surge a Lei dos Sexágenários, ue concedia a alforria aos escravos com mais de 60 anos.
A incoerência encontra-se no fato de que a longevidade de um escravo era em média de até 30 anos, ou seja, dificilmente escravos chegavam aos 60 para serem libertos e, caso chegassem, a liberdade seria apenas para morrerem livres.
Já a Lei do ventre livre, ao mesmo tempo em que concedia a liberdade para eles, também os desamparava, tendo em vista que deixava os bebês recém nascidos sob a guarda dos senhores de escravos, podendo estes serem libertos aos oito anos e o senhor receber uma indenização por tal liberdade (afinal, fizeram um favor por eles não é mesmo? – contém ironia) ou poderia manter sob sua guarda os mesmos até completarem 21 anos.
Obviamente que para os escravocratas era mais vantajoso tê-los em sua guarda até os 21 anos, tendo em vista que eles não eram criados como filhos, e sim como escravos, de modo que até os 21 anos estes seriam mais uma mão de obra para os senhores de escravos.
Tais leis foram colocadas em prática com o intuito de mostrar para o movimento abolicionista que estavam ocorrendo evoluções em relação aos escravos, uma forma de diminuir a pressão que os ingleses estavam exercendo sobre os governantes.
Finalmente chegamos à data tão esperada, 13 de maio de 1.888. A festejada Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, que com apenas dois artigos decretou, pelo menos no papel, a abolição da escravidão no Brasil.
Todavia, muito embora a tão sonhada abolição da escravatura, o Brasil não empenhou, de fato, esforço algum em políticas reparadoras e indenizatórias para melhoria da vida daqueles que sofreram com a prática escravista.
Não existe discussão do ponto de vista histórico, obviamente foi um ponto marcante historicamente, mas socialmente deixou muito a desejar.
Após a lei Áurea, a segregação racial dos negros libertos não diminuiu. O Brasil não dispôs regras de segregação racial nem tampouco lançou mão de políticas que integrassem o negro como cidadão de direitos.
O Código Penal de 1890, por exemplo, criminalizava práticas africanas, como o curandeirismo, a capoeira e a vadiagem, de modo que esses tipos penais visavam o encarceramento em massa da população negra, uma discriminação velada mas muito efetiva.
Com o intuito de baratear o custo da mão de obra, as fábricas e os fazendeiros ofereciam empregos aos negros com salários irrisórios, de forma que pela condição em que os mesmos se encontravam era melhor aceitar a proposta do que continuar em condições deploráveis de vida, sendo classificados, inclusive pela lei, como criminosos.
Já os que não tinham a oportunidade de fazer essa permuta com os fazendeiros permaneciam sem renda para conseguir um local para residir e desta forma encontravam-se desamparados, desempregados e desabrigados, fadados a serem tratados pela lei como vadios e criminosos.
Em 1951 surge a Lei Arinos, que incluía entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Foi a primeira lei brasileira que efetivamente iniciou o combate ao racismo.
Com o advento da constituição federal de 1967, o racismo foi tratado explicitamente, e nela tivemos disposições sobre igualdade e punição da prática de preconceito racial.
Em 3 de julho de 1.968 surge a Lei 5465, conhecida por Lei do Boi, a qual, em seu artigo 1º, determinava as cotas de reservas das vagas de ensino médio agrícola e das escolas superiores de agricultura e veterinária, sendo elas 50% para agricultores e seus filhos que residam em zona rural e outros 30% para agricultores e seus filhos que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio.
O negro novamente foi esquecido, não tendo direito à reparação a todo o atraso cultural que sofreram, não possuindo, pois, oportunidade de alcançar o nível cultural disponível ao branco, ou seja, perpetuando a desigualdade já existente.
Tal fato ocorreu em um período não tão distante dos dias atuais, já que dista meros 55 anos atrás, fato este que demonstra que o Brasil ainda se encontra atrasado demais em relação à reparação histórica que deveria ocorrer.
Em 1.988 surge a Constituição Federal vigente, onde em seu artigo 4º, inciso VIII, menciona o repúdio ao terrorismo e ao racismo, assegurando em seu artigo 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, tornando assim o racismo crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão.
Sem sombra de dúvidas este dispositivo constitucional trouxe um avanço para o Brasil, levando em consideração todo o histórico de discriminação anterior. Não digo que fez milagres, tampouco modificações extremas, mas tentou trazer um pouco de dignidade àqueles que tanto já sofreram pela discriminação sofrida.
Somente no ano de 2001, na conferencia de Durban, o Brasil reconheceu-se internacionalmente como um país racista, a primeira medida de reparação foi o surgimento da Lei nº 10.639, assinada pelo Presidente Lula, determinando a inclusão do artigo 26-A na Lei nº 9.394 de 1.996, o qual estabelece que o conteúdo programático dos colégios incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
Em 2.009 entra em vigor a portaria 992, referente à política de saúde da população negra.
Em 2.010 surge o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei nº 12.288, dispondo em seu artigo 1º a garantia à população negra da igualdade de direitos, conforme colacionado abaixo:
Art. 1° – Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:
I – discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;
II – desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;
III – desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais;
IV – população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga;
V – políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais;
VI – ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.
No ano de 2.012 surge a Lei de Cotas, nº 12.711, onde em seu artigo 1º determina que as instituições federais de educação reservarão em cada concurso seletivo no mínimo 50% de suas vagas para alunos que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Em seu parágrafo único determina que 50% das vagas a que se trata o caput deverão ser reservadas aos estudantes com renda familiar igual ou inferior à 1,5 salário mínimo per capita.
Desta forma, não é válido o argumento que a cota deveria ser para pobres, para pessoas que devido às faltas de oportunidade não tiveram condições de um estudo qualificado e não para negros, tendo em vista que a cota proposta pela aludida lei abrange tanto um quanto outro e, via de regra, no caso do negro, o mesmo encontra-se abrangido na qualificação de pobre, intrinsicamente.
Diante de tudo que expus acima, fica fácil e nítido perceber que o racismo teve seu início a partir do tráfico negreiro, já chegando ao Brasil em condição de marginalizado, sendo discriminado pelo fato de possuir cultura diferente do europeu, sendo o negro visto como inferior e não desenvolvido, pelo simples e pueril fato de ter mais melanina em sua pele que o branco.
A cor de pele se tornou sinônimo de marginalidade, inferioridade, cultura subdesenvolvida, de forma que tais signos acompanham o negro como estereótipo deste até os dias atuais.
Frente a esses repugnantes rasgos de crueldade, acredito que não faça sentido algum comemorar os 135 anos da assinatura da Lei Áurea, vez que a cultura escravista do Brasil não mudou com uma simples assinatura em um papel.
Infelizmente, temos ainda nos dias de hoje, em pleno século XXI, episódios de discriminação raciais recorrentes, mas como já diz o ditado “O brasileiro não desiste nunca”, e a luta é constante e diária, e cabe a nós incentivarmos todo dia um pouco, o próximo ao nosso lado, a desconstruir esses conceitos retrógrados e infundados pautados na cor da pele.
BIBLIOGRAFIA:
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NABUCO, Joaquim. 2011. O abolicionismo, (online). Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2011. p.13 Disponível em: <https://books.scielo.org> Acesso em: 11 de maio de 2020.
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